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Movimento Autismos Plurais - MAP

A Ética Cristã, o Preconceito e o Autismo

Este texto é uma continuidade do texto que escrevi para a Revista PsicoTeo, edição 60 de 2018, do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos – CPPC – intitulado “a ética do amor ao próximo, diversidade funcional e o combate ao preconceito”.

 

Penso que a relevância deste texto, assim como do anterior, é justamente por se dirigir a um país composto em sua imensa maioria – cerca de 80% - por cristãos, e aqui me incluo. Mas também se dirige a todos aqueles praticantes do do amor, incluindo membros de outras religiões, os “Sem-Religião” e os ateus.  

 

Parto do pressuposto que a ética cristã se baseia nos 2 Mandamentos dados por Jesus; sim, são 2 mandamentos que Jesus nos deu em substituição aos 10 Mandamentos de Moisés. São eles:

“Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu espírito (Dt 6.5)”; e: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lv 19.18)” (Mt 22.37-39). Em outra passagem, Jesus diz: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13.34).

 

Trata-se, portanto, de uma ética do Amor. Amor ao Pai sobre todas as coisas e amor ao próximo como a ti mesmo. Na verdade, há um amor triplo aqui; o amor a Deus, ao próximo e o amor a si mesmo; pois a expressão “como a ti mesmo” pressupõe que a pessoa ame a si própria também. O que sabemos muito bem no campo da psicologia, de fato, é que sem amar a si própria, a pessoa não pode amar o outro. Isto quer dizer que a pessoa deve aprender a se valorizar, se respeitar e se aceitar para, então, poder valorizar, respeitar e aceitar o outro, o próximo de que Jesus nos fala.

E este amor triplo ocorre simultaneamente. Amo ao mesmo tempo a Deus, ao próximo e a mim mesmo.

 

O que esta ética do amor tem a ver com o autismo? Aí é que entra o tema central do texto, no qual falo do autismo, mas se aplica igualmente a todas as pessoas com deficiência. O que quero passar para vocês é que a Ética Cristã do Amor ao Próximo é completamente incompatível com o preconceito, com práticas discriminatórias e estigmatizantes, que colocam o outro, no caso o autista, num lugar de inferioridade, de menos, de “inferioridade humana”. Isto se aplica a qualquer tipo de preconceito.

 

Voltando aos ensinamentos de Jesus. E quem é o próximo de que Jesus nos fala? É apenas meu amigo, meu familiar? Não, o próximo, como nos ensina Jesus, é quem está à minha frente, nós devemos ser o próximo, como na parábola do Bom Samaritano; o próximo é, inclusive, o “inimigo”. Jesus nos convoca a amar ao inimigo: “Se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Também os pecadores amam aqueles que os amam” (Lc 6.33). “Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestar, sem daí esperar nada” (Lc, 6.35).

E quem é o inimigo deste ensinamento basilar do Cristianismo? Certamente, não é a pessoa que nos inflige o mal (embora possa sê-lo), mas o outro estranho a mim, o estrangeiro, o desconhecido, o não semelhante, o diferente, tomando mais uma vez o exemplo do Bom Samaritano, da pessoa que se faz “o próximo” para um estrangeiro.

Esta é a ética inclusivista de Jesus, do Cristianismo – a verdadeira Inclusão - que se aplica, como sabemos, a todos os seres humanos, sem distinção ou acepção de pessoas; diferentemente, infelizmente, de algumas religiões que, na prática, acabam adotando uma ética exclusivista, ou seja, que se aplica apenas aos “seus”, apenas a um povo específico. E infelizmente, na prática, isto acaba acontecendo com muitos cristãos também, contrariando os ensinamentos e práticas de Jesus.

Pois bem, se o próximo inclui qualquer pessoa que está diante de mim, o diferente, o estrangeiro, o “estranho a mim”, o desconhecido, inclui obviamente o sujeito autista e qualquer pessoa com deficiência.

Portanto, se sou cristão – e 80% da população brasileira se diz cristã – e pretendo vivenciar o Cristianismo na prática (ou serei cristão da boca pra fora, que é o mesmo que não ser cristão), não posso, em hipótese nenhuma, praticar o preconceito; ao contrário, devo amar a Deus e ao próximo como a mim mesmo. Devo aprender a respeitar-me, valorizar-me e aceitar-me e, ao mesmo tempo, aceitar, valorizar e respeitar o outro, o que exclui qualquer prática preconceituosa.

Uma breve ressalva sobre o amor a Deus: o amor a Deus, como nos diz Jesus, é expresso também no amor ao próximo: "Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver. Então os justos lhe responderam, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. (Mt 25.35-40). Em João (4.20), temos a seguinte passagem: "Se alguém diz: eu amo a Deus, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, pois  quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê". O amor a Deus, portanto, passa pelo amor ao próximo. 

 Por outro lado, boa parte da Teologia Cristã, como em Santo Agostinho, e no misticismo cristão, como em Santa Teresa D’Ávila e também nos outrora considerados hereges Marguerite Porete e Mestre Eckhart, nos mostra que encontramos Deus dentro de nós, no mais profundo de nossas almas. Santo Agostinho, em sua obra “A Verdadeira Religião”, nos mostra que quando encontro comigo mesmo, com meu mais profundo eu, é que encontro com Deus. Como canta o poeta Gilberto Gil: “se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz”. Encontramos com Deus no encontro com o próximo e conosco mesmos, no mais profundo silêncio. Em Lucas há a seguinte passagem de Cristo: “o Reino de Deus está dentro de vós” (Lc 17.20-21). Alguns estudiosos traduzem por “entre vós”. Considero ambas traduções válidas, entre e dentro de vós. Podemos extrair, então, a partir do que foi exposto, que Deus, a transcendência está dentro de nós e no outro. Disto resulta uma ética da alteridade, pautada numa espiritualidade do amor, que nos faz transcender. 

 

Voltemos à questão do preconceito, do autismo e das pessoas com deficiência de uma forma geral.

 

Você, cristão, que está lendo este texto vai pensar, “mas eu como cristão, é claro que não sou preconceituoso, de forma alguma”.

Mas vou falar, então, mais que sobre as formas explícitas de preconceito, como xingamentos, o bullying nas escolas, formas facilmente reconhecidas; vou falar sobre aquelas formas mais sutis de preconceito, implícitas, que predominam em nossa sociedade. Vou tentar exemplificar algumas destas formas implícitas de preconceito que, certamente, boa parte da população brasileira pratica; algo, portanto, completamente incompatível com a Ética Cristã.

Toda vez que você olha para uma pessoa autista ou qualquer pessoa com outra deficiência e sente pena, você está sendo preconceituoso/a. Sim, a piedade, a caridade na forma de esmola e de pena – fortemente presente em nossa sociedade por herança das práticas de outrora dos conventos e clérigos oficiais – constituem, na verdade, uma prática preconceituosa, pois “subjuga a outra pessoa a um lugar de inferioridade”, de “menos humana”. Portanto, se quisermos sermos cristãos enquanto sociedade, devemos abolir tal sentimento. Jesus não sentia pena das pessoas, Ele agia, ajudava, cuidava e servia ao próximo. Pratiquemos a Caridade no sentido da ação pelo outro, do cuidado pelo outro; quem age pelo outro, não tem tempo de sentir pena. Mas quem sente pena, não age, apenas “dá esmolas”. Este é o primeiro ponto.

 

Segundo ponto: o preconceito aparece também (de forma não tão sutil) nos diversos olhares que as pessoas dirigem a uma pessoa autista, por exemplo, quando ela faz alguma estereotipia motora, com as mãos, os braços, ou quando ela grita, ou mesmo faz uma birra. Os olhares são no sentido da reprovação, não da ajuda, do acolhimento ou da aceitação; olhares como se o outro fosse um “ET”, como se aquilo fosse uma “aberração”; saibam que o autismo (e outras formas de deficiência, incluindo a Síndrome de Down, por exemplo) é fruto, em grande parte, da variabilidade genética do ser humano, fundamental para a sobrevivência da espécie; variabilidade, diferenciação, diversidade são, portanto, essenciais à VIDA humana. Mas mais que isto, seja cristão (se assim se considerar; até porque, em geral, os “ateus praticantes do bem” de nosso país, ao seguirem os Direitos Humanos, acabam seguindo valores e práticas oriundos dos valores cristãos e os vivenciando, na prática, muito mais que muitos que se consideram “cristãos). Cuidado com seus olhares!

 

Outro ponto a ser considerado - e certamente, haverá muito mais, mas é preciso concluir o texto (sempre inacabado), que já se alonga em demasia - é o preconceito que se dá pela exclusão dos autistas dos espaços públicos em geral, como teatros, cinemas e, principalmente, Pasmem, das igrejas.

 

As igrejas, em geral, Católicas ou Evangélicas, portanto, igrejas cristãs, não estão preparadas para receberem as crianças, as pessoas autistas, para o verdadeiro acolhimento destas. E quando digo igrejas, estou falando dos padres, pastores e obviamente de toda a comunidade que as compõe. Porque se uma criança autista emite um grito ou mesmo faz uma estereotipia, lá vem os tais “olhares reprovadores” ou a exigência – implícita ou explícita – do silêncio (embora muitos outros "barulhos" sejam permitidos), a mensagem de que aquele comportamento – o qual expressa a variabilidade humana – é inadequado e atrapalha o “bom andamento do culto ou da missa”. E desta forma, as Igrejas Cristãs de nosso país vão excluindo os autistas e, como expus ao longo do texto, não praticando o “Amor ao Próximo”. É uma questão seríssima sobre a qual as Igrejas devem pensar e se prontificarem a mudar – e fazer campanha, se assim quiserem, promover a conscientização da comunidade, dos fiéis, para o acolhimento aos sujeitos autistas. Não adianta dizerem “venham” e os olhares reprovadores, preconceitos implícitos-explícitos da comunidade cristã, perdurarem. E neste caso, digo especificamente dos autistas, em virtude de suas peculiaridades, como mencionei, porque de certa forma – ainda que o sentimento de pena possa existir em muitas pessoas nas celebrações – outras pessoas com deficiência participam mais dos cultos e das missas, como pessoas com deficiência física, visual, visto que, na visão da Igreja, não “atrapalham o bom andamento da celebração”.

O texto ficou maior que eu esperava.

Mas muita coisa precisa ser dita e transformada se quisermos ser verdadeiramente cristãos.

Portanto, se quisermos sermos “Verdadeiramente” cristãos, que pratiquemos a ética do “Amor ao próximo”, do amor ao “inimigo”; que pratiquemos não pela metade muito menos da boca para fora, mas por inteiro e no cotidiano da vida.

 

Se 80% dos brasileiros conseguirmos fazer isto, somados aos “ateus praticantes do bem”, aos membros de outras religiões e também àqueles do grupo “sem religião”, mas todos praticantes do Amor,  daremos um salto qualitativo sem precedentes enquanto Sociedade; faremos, como nos propôs Jesus, uma Reforma Moral, Íntima, essencial à transformação de nosso país e sociedade e de nós enquanto seres humanos; porque a verdadeira Mudança virá de dentro para fora.

 

Por Stephan Malta Oliveira

 

Referências:

 

AGOSTINHO DE HIPONA, A verdadeira religião/De uera religione. Edição bilíngue português/latim, Tradução de Paula Oliveira e Silva e Manuel Ramos, Introdução e notas de Paula Oliveira e Silva. Edições Afrontamento, Porto, 2012, 200p.

BÍBLIA SAGRADA (2015). 23ª. Edição. Editora Ave Maria

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