top of page

A contestação dos diagnósticos psiquiátricos e a valorização da diferença humana

As primeiras contestações mais contundentes ao diagnóstico psiquiátrico foram feitas nas décadas de 60 e 70 do século passado pelos movimentos antipsiquiátricos, inspirados em parte, pelos movimentos de contracultura; dentre eles, destacam-se a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana.

A primeira surgiu na Inglaterra, liderada pelos psiquiatras David Cooper e Ronald Laing, tecendo uma crítica bastante contundente à psiquiatria e à própria noção de doença mental, que culminou com o livro de Thomas Szasz sobre o “mito da doença mental”. Foram questionados os binômios normalidade/patologia e os métodos da intervenção psiquiátrica, sendo a “invenção” da doença mental operada pelos mecanismos sociais.

O Movimento Italiano, liderado por Basaglia e Rotelli, coloca a doença entre parênteses e enfoca o doente como um todo, e o objeto da psiquiatria passa a ser a existência-sofrimento dos pacientes em relação ao corpo social (Rotelli, 1990). É dada ênfase, portanto, ao sujeito que sofre em sua relação com o corpo social, sem negar, entretanto, aspectos biológicos da “doença”.

Tais movimentos tiveram início, meio e fim, sendo a Antipsiquiatria bastante efêmera, mas não menos intensa. No entanto, seus pressupostos e ideologias permanecem vivos nas nossas práticas atuais no campo da psiquiatria e saúde mental.

Recentemente, tem havido um debate caloroso entre duas vertentes teóricas acerca do estatuto ontológico da doença, especialmente, da doença mental. Estas duas vertentes se dividem em naturalismo e normativismo.

A vertente naturalista defende a ideia do diagnóstico como algo natural, dado à priori, que está ali, na natureza, “pronto para ser descoberto”. Por outro lado, o normativismo defende a ideia da construção social dos diagnósticos bem como a inseparabilidade entre fatos e valores; que para cada fato biológico, há, por exemplo, a atribuição de um dado valor. Deste modo, os valores presentes na doença médica, em geral, são praticamente inquestionáveis, como o valor da vida ou mesmo do alívio do sofrimento, como no caso das doenças crônicas. Já na psiquiatria, como aponta o psiquiatra britânico Bill Fulford, os valores são bastante conflitantes na definição da doença mental, pois entram em cena os valores dos comportamentos desejáveis e desviantes e, mais recentemente, as demandas por alta performance e alto funcionamento.

A vertente naturalista tem suas dificuldades com o diagnóstico psiquiátrico, uma vez que este não se baseia em nenhum marcador biológico específico, ainda que se venda a ideia de que num futuro próximo (que nunca chega, diga-se de passagem, pela complexidade do fenômeno objeto da psiquiatria) ele será possível. Os critérios para a definição do que é patológico ou não na psiquiatria são, portanto, estritamente sociais, relacionados às normas e valores sociais hegemônicos. Ainda que se fale em “disfunção interna” ou “disfunção neuronal”, não há nenhum critério intrínseco ao funcionamento neuronal, por exemplo, que possibilite afirmar que um dado funcionamento neuronal é “patológico, anormal” (a não ser que consideremos a norma estatística, e aí, temos um sério problema, em tentarmos equiparar a normalidade à média). É somente na relação do funcionamento neuronal com o fenótipo e, mais especificamente, com o funcionamento do sujeito em um meio social específico, que se dirá sobre um funcionamento “patológico” acerca das conexões neuronais. Portanto, as normas sociais têm uma primazia na definição do que é patológico ou não na psiquiatria.

Dois filósofos contemporâneos tentam realizar a difícil tarefa de definição do objeto da psiquiatria. Wakefield, em uma tendência mais naturalista, o define como “disfunções internas que causam dano”. Allan Horwitz, buscando superar a dicotomia natureza/cultura, o define como “disfunções internas socialmente inapropriadas”. Entretanto, como dito anteriormente, o termo “disfunção”, dado à priori, carece de evidência científica quando se trata de funcionamento neuronal (no caso das demais especialidades, não é difícil definir como alteração, resultante de uma disfunção pancreática, por exemplo, níveis elevados de glicemia – ainda que a definição de qual o limite aceitável, 100, 110, seja arbitrária – ou na definição de uma hepatopatia pela elevação plasmática das transaminases).

Voltando à definição do objeto da psiquiatria/saúde mental, talvez uma definição mais razoável, inspirada naquela de Franco Rotelli, seja a de sofrimento psíquico, o qual surge da relação do sujeito com as normas e valores sociais vigentes, considerando as diferenças (e não disfunções) biológicas/neuronais do sujeito. Isto engloba as múltiplas dimensões do sofrimento psíquico, quais sejam: sócio-cultural-histórica, psíquica, biológica, existencial (noética)...

E a ideia de sofrimento psíquico tem a vantagem de garantir assistência/ajuda àqueles que necessitam, reduzindo drasticamente a estigmatização, por não se tratar de “doença” propriamente dita e suas implicações moralizantes na psiquiatria. Além disto, sofrimento remete à noção grega de pathos, que diz respeito às paixões da alma, não se reduz à ideia de doença (como aconteceu na Modernidade) e trata-se de algo que permeia toda a existência humana.

Chegamos, então, às críticas mais contundentes ao diagnóstico psiquiátrico na contemporaneidade, vindas, sobretudo, de Movimentos Sociais identitários, como os Movimentos da Deficiência (inspirados nos Movimentos Feminista, Gay e Negro do século passado), de setores da sociedade como a British Psychological Society e a proposta de abolição total do diagnóstico psiquiátrico e substituição pelo Psychological Formulation, de diversos atores sociais como o jornalista estadunidense Robert Whitaker e seu site Mad in America, e de abordagens teóricas das ciências humanas e sociais, como a sociologia/antropologia médica, a filosofia da psiquiatria, etc. Na própria psiquiatria, encontramos duras críticas à hiperpatologização (aqui o pathos se confunde à noção de doença) dos comportamentos, sobretudo na infância, vindas por exemplo do psiquiatra Presidente do DSM-IV, Allen Frances, um dos críticos mais contundentes ao DSM-5. Frances não defende a extinção dos diagnósticos, mas critérios mais rígidos nas suas definições, para que as “fronteiras entre normalidade e patologia” voltem a se tornar mais nítidas. Mas, aqui, caímos novamente no velho questionamento trazido pelos antipsiquiatras: o que seria afinal patologia na psiquiatria? Desvios da norma, comportamentos desviantes? Quais comportamentos desviantes? Aqueles que geram sofrimento, que resultam em desordem social, ou aqueles que não atendem às demandas por alta performance, como a performance cognitiva?

E voltamos, então, aos Movimentos Sociais (pela legitimidade incontestável que possuem). Tais movimentos, como o Deaf Pride, defendem o que chamam de modelo social da deficiência, que considera a deficiência como diferença e que, boa parte do sofrimento dos “disabled people”, advém da “opressão social”, ou seja, das barreiras impostas pela sociedade, não apenas barreiras físicas, mas barreiras morais, em termos de preconceitos e estigmatizações.

Inspirado nos Disability Movement e criado por “autistas chamados de alto-funcionamento”, surge o Movimento da Neurodiversidade, termo criado pela socióloga australiana e Asperger, Judy Singer, que diz respeito à variabilidade natural do genoma humano e, consequentemente, do funcionamento neuronal. Os ativistas da neurodiversidade defendem o autismo enquanto identidade e diferença, não enquanto patologia. Assim como os Movimentos da Deficiência, são radicalmente contra o que chamam de “modelo médico do déficit, da tragédia”. Diferentemente deste último, enfatizam mais as potencialidades que as limitações dos sujeitos.

A grande contribuição destes movimentos para a definição do que seria afinal o objeto da psiquiatria vem justamente do apontamento sobre a ênfase excessiva dos diagnósticos psiquiátricos sobre o déficit, sobre aquilo que falta e precisa ser “corrigido”e “curado”, com base em critérios normativos. Os ativistas são radicalmente contra a ideia de cura e contra tratamentos que visam “normatizar e padronizar os indivíduos”, enquadrando suas expressões aos padrões sociais vigentes.

De fato, a ideia de “cura” na psiquiatria, ao subentender de que algo está “errado” com o sujeito, acaba por reforçar as práticas estigmatizantes e preconceituosas, advindas dos valores sociais hegemônicos; acaba por não aceitar a diferença e diversidade humana, como uma riqueza inexorável e imensurável; por tentar normatizar e padronizar os indivíduos, reforçando uma cultura capacitista, segundo a qual uma pessoa é considerada menos, inferior, por apresentar limitações em determinadas capacidades/habilidades, físicas ou mentais, consideradas “essenciais” pelas normas e valores sociais dominantes, sendo estas capacidades, portanto, valoradas positivamente. A psiquiatria, ao patologizar (no sentido de doença) a diferença e o sofrimento cotidiano humano, ao invés de combater o preconceito (pela dessubjetivação, “ele não tem culpa”, “é algo que ocorre no seu cérebro”), produz o efeito de reforçar as práticas discriminatórias e excludentes (“ele não é capaz”, “é inferior”, etc), chegando num extremo a práticas muito próximas do eugenismo. A ideia da "cura a qualquer preço" (o furor curandis médico) implica, em última instância, na psiquiatria, na ideia de homogeneização e "melhoramento da raça humana".

A tentativa de normalizar/padronizar vai totalmente na contramão dos anseios por liberdade e valorização da diferença e diversidade humana que advém das sociedades democráticas plurais, contemporâneas. A ideia é promover a valorização e o encantamento pela variabilidade individual dos seres humanos (dos seres vivos como um todo), ou seja, encantamento com a diversidade humana e biodiversidade ecológica , respectivamente.

A ideia, nas sociedades às quais aspiramos, é justamente de criarmos normas tão flexíveis quanto as possibilidades de existência humana, de modos de estar no mundo, normas que incluam a toda e qualquer variabilidade/diferença do ser humano, marcada por sofrimentos, problemas, adoecimentos ou não.

Daí vem a pergunta inevitável. O que fazer então com a psiquiatria, qual o seu destino?

A resposta é:

Revitalizá-la, revigorá-la, não mais como ‘braço” do sistema, reforçando normas e valores vigentes e práticas preconceituosas e estigmatizantes, mas tratando (não só com medicamentos, mas com abordagens plurais, incluindo as arteterapias, musicoterapias, psicoterapias, etc) o sofrimento psíquico (seu objeto, como mostrado anteriormente na dimensão da experiência pathica); sofrimento este que é inerente ao humano, que pode estar presente em maior ou menor grau num ou noutro sujeito, dependendo das relações que este estabelece com o meio social (considerando suas diferenças biológicas/neuronais, mentais e comportamentais), e em maior ou menor grau na mesma pessoa, de acordo com o momento e circunstâncias da vida.

A "cura" que se busca com estas abordagens plurais é no sentido do healing (enquanto transformações da experiência e das possibilidades de ações do sujeito no mundo), não do curing (enquanto erradicação da doença, em um sentido estritamente médico).

Como afirma um dos mais importantes pesquisadores dos Disability Studies, Lennard Davis: “somos todos incompletos, parciais (...) e interdependentes”. Precisamos uns dos outros e sermos “completados” pelas “tecnologias” da medicina/psiquiatria/saúde mental, algumas vezes por biotecnologias (incluindo, as farmacológicas), mas, sobretudo, pelas “tecnologias” da ajuda, do encontro, do acolhimento, do afeto, que aumentam as potencialidades e possibilidades do ser... "tecnologias" do amor, que se traduz em ação concreta pelo outro, em transformação...

Por Stephan Oliveira

Destaque
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Tags
bottom of page