top of page

As transformações na definição de deficiência – inspirações para a noção de “transtorno mental”

Proponho, neste texto, uma reflexão acerca das constantes mudanças que o termo deficiência vem sofrendo ao longo das últimas décadas, em grande parte, pela influência dos movimentos sociais relacionados à defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Paralelamente a estas mudanças, vem havendo uma transformação na atribuição valorativa do termo, antes negativa/pejorativa e, atualmente, já começa a haver uma certa positivação valorativa da noção.

Esta transformação conceitual é marcada pelo deslocamento do enfoque sobre o indivíduo para o enfoque sobre a relação do sujeito com o meio social/físico.

Penso que estas modificações constantes devam servir como inspiração para o objeto da psiquiatria/saúde mental, atualmente denominado como “transtorno mental”. Diferentemente do que ocorre com a noção de deficiência, processo fortemente influenciado pelos movimentos sociais, na psiquiatria, talvez por uma aspiração a uma “cientificidade neutra”, a definição do seu objeto, o transtorno mental, parece imutável, com o enfoque recaindo invariavelmente sobre o indivíduo.

Voltemos às transformações da definição de deficiência.

A Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências, segundo resolução da ONU N° 2.542/75, de 09 de dezembro de 1975, define deficiência como “aquele indivíduo que, devido a seus "déficits" físicos ou mentais, não está em pleno gozo da capacidade de satisfazer, por si mesmo, de forma total ou parcial, suas necessidades vitais e sociais, como faria um ser humano normal”. O enfoque é, portanto, sobre o “déficit” do indivíduo, que o impede de satisfazer suas necessidades como um “ser humano normal”. O que seria afinal este ser humano normal? Verifica-se ainda a presença do Ideal Normalizador nesta perspectiva.

A Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), da OMS (versão em língua portuguesa de 2004) articula o modelo médico ao modelo social. Por um lado, ainda localiza a deficiência no corpo, enquanto uma perda ou desvio de uma função ou estrutura do corpo. Por outro lado, enfatiza a interação com o ambiente, considerando que barreiras ou facilitadores sociais podem influenciar diretamente o desempenho, a atividade e a participação social das pessoas com deficiência. Trabalha com uma noção relativamente estática de capacidade, que corresponde ao funcionamento máximo que uma pessoa pode atingir num determinado domínio em um dado momento de sua vida.

O modelo social da deficiência, fruto do ativismo dos Movimentos da Deficiência e dos chamados Disability Studies (acadêmicos com deficiência e ativistas que falam por si próprios, seguindo o mote principal destes estudos e movimentos – “nothing about us without us”), desloca a definição do indivíduo para o entremeio, ou seja, para a relação sujeito-meio, fazendo uma distinção entre lesão/déficit/disfunção (impairment) e deficiência (disability). A primeira estaria localizada no corpo, na dimensão biológica do indivíduo, enquanto a segunda seria fruto da “opressão social”, da relação do impairment com as barreirais sociais, sejam elas físicas e/ou atitudinais.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD), também conhecida como Convenção de Nova York, de 2007, que contou com a participação e adesão de centenas de países membros das Nações Unidas, apresenta uma nova definição de deficiência, inspirada no modelo social e não mais no modelo médico-individualista. Deficiência, então, passa a ser vista como “impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com uma ou mais barreiras sociais, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. A Convenção abre mão dos termos “pessoas portadoras de deficiência”, “pessoas com necessidades especiais”, em prol da expressão “pessoa com deficiência”. A ênfase à relação do sujeito com o ambiente no qual este se insere é clara e a deficiência resulta justamente desta interação, de meios sociais que se constituem como barreiras para a participação plena do sujeito (que apresenta determinados “impedimentos”) na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. A Convenção de Nova York exerce influência direta sobre o Direito Brasileiro. O Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015, inspira-se no Tratado Internacional que, internalizado ao ordenamento interno brasileiro, tem status de Emenda Constitucional. A Lei da Inclusão traz a mesma definição de deficiência da CRPD (Convention on Rights of Persons with Disability); definição esta bastante abrangente, que inclui também pessoas com sofrimento psíquico, quando fala em “impedimentos de longo prazo de natureza mental”.

Seguindo as múltiplas definições de deficiência, não necessariamente em ordem cronológica, a ativista e “disabled” Susan Wendell, que apresenta encefalomielite miálgica com “síndrome da fadiga crônica”, no final dos anos 90 já trazia a noção de deficiência enquanto diferença que, na relação com o meio social, poderia resultar em desvantagens ou desigualdade de oportunidades.

Partindo das definições da Convenção de Nova York e de Susan Wendell, podemos conceber deficiência como diferenças físicas, genéticas, sensoriais, neuronais, cognitivas, mentais ou comportamentais dos sujeitos que, em interação com uma ou mais barreiras sociais (físicas e/ou atitudinais) resultam em desvantagem/desigualdade de oportunidades, as quais impedem a plena participação do sujeito na sociedade em igualdade de condições com os demais cidadãos.

E como podemos definir, então, o objeto da psiquiatria, inspirando-se na noção dinâmica e mutável de deficiência?

Primeiramente, abandonemos a ideia de transtorno mental, que já traz consigo uma atribuição valorativa negativa. Fiquemos com a noção de “sofrimento psíquico”.

Pensemos na definição do sofrimento psíquico a partir da mesma lógica interativa que permeia a noção atual de deficiência. Antes, quero considerar a ideia de disfunção cerebral e por quê não adotar esta terminologia na definição do objeto da psiquiatria. Até o momento, pelo menos, não temos nenhuma comprovação, de fato, que confirme a hipótese de que os “transtornos mentais”, ou como preferimos, o sofrimento psíquico, seja fruto de disfunções cerebrais ou “desequilíbrios neuroquímicos”.

Até o momento, o que temos são hipóteses e não comprovações científicas, tanto que não temos quaisquer marcadores biológicos que possibilitem o diagnóstico psiquiátrico. Proponho, tal qual os ativistas da Neurodiversidade, falarmos em diferença ou diversidade neuronal, mais que em disfunção neuronal. Como afirma o educador canadense Thomas Armstrong, não “há algo como um cérebro normal sobre o qual todos os demais devam ser comparados”. Quando existirem e, se existirem, marcadores biológicos para o diagnóstico, como nas demais doenças médicas, aí sim falaremos em disfunção neuronal, como falamos em disfunção pancreática, disfunção hepática, renal, tireoidiana, etc. E valorizaremos da mesma forma os sujeitos que apresentarem tais disfunções. Até o momento, o que há são “disfunções sociais”, ou seja, comportamentos que rompem ou se confrontam diretamente com as normas e valores sociais vigentes.

Valendo-se de um rigor epistêmico, portanto, proponho a definição do objeto da psiquiatria, seja o sofrimento psíquico ou mesmo problemas psíquicos, como a diferença genética, neuronal, cognitiva, mental e/ou comportamental do sujeito que, em interação com uma ou mais barreiras sociais (atitudinais, sobretudo), resulta em desvantagens/desigualdades de oportunidades, sofrimentos ou problemas.

Portanto, o enfoque não recai mais apenas sobre o indivíduo, mas sobre a relação deste com seu meio social. Um meio, por exemplo, com normas mais rígidas, repressoras e restritas, próprias de um ideal normalizador, obviamente aumentará muito a desvantagem e as desigualdades dos sujeitos bem como seus sofrimentos e problemas. Ao contrário, um meio acolhedor da diferença e diversidade humana, que valorize as múltiplas formas de existência, com normas mais flexíveis, portanto, e que ofereça os recursos necessários às limitações e potencialidades dos mesmos sujeitos, contribuirá sobremaneira para a redução ou mesmo eliminação da desvantagem/desigualdade e dos problemas/sofrimentos psíquicos, possibilitando, de fato, uma participação social mais plena e efetiva. Neste caso, mais da metade do “tratamento” do sujeito já terá sido realizado.

Destaque
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Tags
bottom of page